CAPÍTULO 3 DE “TEMPO: COMPOSITOR DE DESTINOS”
Por Eduardo Carli de Moraes
LEIA O CAP. 1 – Morando nas mandíbulas do crocodilo
LEIA O CAP. 2 – Um urubu pousou em minha sorte
Pintura de abertura: J. William Waterhouse (Penélope e pretendentes).
Penélope, esposa de Ulisses e prima da formosa Helena, aguarda em Ítaca o retorno de seu
esposo que foi lutar na Guerra de Tróia e que demora-se na volta, perdido em peripécias de marinheiro e narrador, de matador de ciclopes e de audiência para um concerto de sereais. Para afastar os pretendentes enxeridos e desrespeitosos que a cortejam, Penélope formula um sagaz subterfúgio típico de uma trickster. Seu tecer é animado por uma intenção oculta de desfazimento do que foi feito: ela tece a mortalha de Laerte, pai de Odisseu, mas depois des-tece o que tecera. Tudo isso para enganar ardilosamente os pretendentes que a acossam de olho na fortuna do reino de Ítaca.
Sempre fiel à lembrança de Ulisses distante, envolvido nas peripécias homericamente descritas na Odisseia e que atrasam o reencontro do casal, ela prometera aos pretendentes que só se casaria novamente ao finalizar este tecido que ela torna, de propósito, infinalizável. Não seria também o trabalho da rememoração análogo em sua característica de labor infinito, de trabalho não passível de finalização?
Quando Proust, esta Penélope do romance, na torrente de palavras da Recherche, dedica-se ao tecer de seu texto que busca o tempo perdido, não estará também expondo os sulcos, buracos e brechas causados pelo esquecimento? Não estará também erguendo um monumento à inconclusão, dando um exemplo de uma tarefa impossível de chegar a um fim e que precisa sempre ser recomeçada? Se tivesse vivido mais 10 anos, não poderia ter Proust escrito mais 3 ou 4 tomos de sua magnum opus, evocando outras ruínas a partir de outras madeleines?
“Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela foi, mas uma vida como aquele que a viveu lembra dessa vida. (…) Para o autor que lembra, aquilo que ele vivenciou não desempenha de forma alguma o papel principal, mas sim o tecer de suas lembranças, o trabalho de Penélope da rememoração. Ou deveríamos falar de uma obra de Penélope do esquecimento? (…) Toda manhã, despertos, seguramos em nossas mãos, quase sempre de maneira fraca e solta, apenas algumas franjas do tapete da existência vivida, como o esquecer o teceu em nós.” (BENJAMIN, W. Imagem de Proust. Em: Diário parisiense e outros escritos. São Paulo: Hedra, 2020. Tradução Carla M. Damião. Pg. 110-
111.)
Vale frisar que este mito marca presença em algumas obras instigantes e pertinentes da arte contemporânea, a exemplo do romance satírico de Margaret Atwood, A Odisséia de Penélope. A autora do célebre The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) dá voz, em primeira pessoa, à própria Penélope para que explique seus ardis:
“Pensei num ardil… Palas Atena, deusa dos tecidos, dera a ideia: Iniciei a confecção de uma peça grande em meu tear, informando que se tratava de uma mortalha para meu sogro Laertes, pois seria ímpio de minha parte não providenciar um manto magnífico para ele, quando falecesse. Até o término dessa sagrada tarefa eu nem admitira pensar em escolher um novo marido, mas assim que acabasse eu selecionaria rapidamente o afortunado… Ninguém poderia se opor à tarefa extremamente pia.
Eu passava o dia trabalhando em meu tear, tecendo diligentemente enquanto dizia coisas como ‘esta mortalha seria mais apropriada para mim do que para Laertes, pois estou desconsolada e condenada pelos deuses a uma vida que é como a morte.’ Mas de noite eu desfazia o que tecera, para que a mortalha jamais fosse terminada. (…) A mortalha em si ganhou fama instantânea. ‘A teia de Penélope’, diziam, referindo-se à tarefa que misteriosamente jamais terminava. Eu não gostava do termo teia. Se a mortalha fosse uma teia, então eu era uma aranha. Mas não andei tentando pegar homens como se fossem moscas: pelo contrário, tentava evitar que me prendessem numa armadilha.” (ATWOOD: 2005, p. 97)
No romance de Atwood, acompanhada de suas escravas, nas madrugadas repletas de narrativas sussuradas entre as mulheres que conspiram, Penélope e suas cúmplices retrocedem no seu tear, adiando o dia odiento em que se casaria com um dos pretendentes ao trono de Ítaca. Um dia, porém, uma das escravas lhe trai, revelando o segredo aos pretendentes acerca do “tecer interminável” da fiel esposa de Odisseu.
Assim como Penélope tece e des-tece, faz e des-faz, a nossa memória não é uma máquina perfeita de tecer lembranças indestrutíveis, mas sim algo de mais precário e também de mais misterioso: um dano cerebral pode acarretar a perda irreparável de memórias, mas mesmo aquele que nunca teve um sério traumatismo craniano não pode julgar-se ileso em relação à perda de memórias ou ao desenvolvimento do implacável Mal de Alzheimer. Os neurocientistas avançam cada vez mais na descrição material e concreta dos procedimentos que permitem aos cérebros humanos reter memórias, mas também clarificam sobre os processos que nos levam a perdê-las, ou seja, a memória é atravessada por um esquecimento que nos des-lembra. Deslembro, aliás, é o nome de um dos melhores filmes brasileiros contemporâneos sobre o impacto sobre as subjtividades entretecidas em um tempo sinistro como foi a da ditadura empresarial-militar brasileira (65-85). Narrar, filmar, poetar, para que os nossos mortos (inumeráveis) possam escapar do segundo nada do esquecimento – pois “se o inimigo vencer, como não tem parado de acontecer, nem mesmo os mortos estarão a salvo”, como diz a célebre tese sobre História de Benjamin.
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire“, Benjamin também recorre a Proust ao afirmar que sua obra Em Busca Do Tempo Perdido nos dá ideia das “medidas necessárias à restauração da figura do narrador para a atualidade”: “Proust empreendeu a missão com extraordinária coerência, deparando-se, desde o início, com uma tarefa elementar: fazer a narração de sua própria infância”. Nesse sentido, a “busca” na Recherche é uma prospecção não apenas do “inconsciente” ou da “memória” de Marcel e seu eu-narrador, mas prospecção também do arquivo da experiência e do sensível.” (Obras escolhidas III, trad. Hemerson Alves Baptista, Brasiliense, 1989, p. 107, citado desta fonte na Web).
A leitura de Proust conduz a uma concepção de um passado que “dorme” em nós e parece inacessível à vontade consciente, até que um encontro fortuito faz com que emerja, voltando à tona desde seu estado submerso. Neste processo de atenção às emersões do passado instigadas por percepções sensíveis involuntárias, Proust pôde tecer interminavelmente seu livro-mortalha. Monumental tributo à sua busca pelo tempo perdido e nunca plenamente reencontrado, o seu romance parece confluir sem fim numa trajetória onde a rememoração não descansa pois o esquecimento tampouco cessa sua ação. Qual o sentido de tentar lembrar se há forças no mundo e dentro de nós mesmos que insistem em nos fazer esquecer? Talvez o sentido do viver esteja na própria jornada e nesta o rememorar e o deslembrar sejam igualmente necessários e válidos?
A recompensa existencial suprema, apesar de tantos desencantos e decepções, era para Proust o próprio processo de escrever sem fim as memórias, ainda que elas surgissem de maneira descontínua e ao sabor dos encontros de acaso. Talvez por isso, em uma de suas obras-primas enquanto crítico literário, Benjamin tenha destacado com tanta ênfase a analogia entre Proust e Penélope, entre os trabalhos de ambos enquanto tecedores de histórias e narradores infinitos.
Frisemos que o tecer da mortalha não progride linearmente no tempo, do início rumo à conclusão, mas é constantemente desfeito e destecido, “retrocedendo” ao invés de avançar sem desvios rumo a seu télos. A mortalha não progride, nas mãos de Penélope, mas dança feito um bêbado, dando vários passos à frente, muitos mais atrás, num avançar e retroceder trôpego que não quer chegar ao fim, que adia a conclusão da tarefa. Eis um processo de Penélope que poderíamos interpretar em analogia à ação do esquecimento quando nos impõe a des-lembrança?
A memória humana não é uma linear acumulação de tesouros que seriam ordeiramente classificados em um arquivo, tornando-se depois plenamente acessáveis/acessíveis, através da vontade consciente do sujeito, que iria à memória para recuperar dados e fatos tal qual aconteceram. Esta é a visão ilusória que tanto Benjamin quanto Proust combatem e descontroem, sugerindo algo que tome seu lugar. Assim como a mortalha de Penélope, a memória tem em si imbricada o esquecimento, assim como a história é passível de “retrocesso”, de dissolução daquilo que havia sido construído, de uma queda em catástrofe do que haviam sido os maiores orgulhos – documentos e monumentos – da civilização.
Ouso exemplificar dizendo que é como o Brasil chorando o assassinato de Marielle Franco, botando fé na esperança de transformar o luto em luta, só para ver suas lágrimas e seu esperançar iluminados pelas chamas sombrias do Museu Nacional em chamas, memórias materializadas reduzidas a cinzas, numa imensa vitória do esquecimento (cf. BRETAS, Aléxia, 2020).
Em Proust, segundo Benjamin, há uma atenção especial à memória que não depende de nossa vontade, que não decorre de uma intenção consciente de ir “pescar” uma informação no rio das experiências passadas como quem, por ter perdido a chave, volta ao apartamento na intenção explícita e voluntária de encontrar a chave desaparecida.
A memória voluntária é aquela em que o sujeito consciente vasculha sua própria experiência em busca de algo específico, sobretudo sob a pressão de um episódio pragmático: caso eu me veja diante da perspectiva de uma viagem para uma cidade onde morei há 10 anos atrás, e à qual nunca mais voltei no entretempo, posso ser estimulado a vasculhar lembranças em busca das pessoas que conheci, dos endereços em que moravam, no intuito pragmático de re-encontrar antigos amigos e reatar antigos laços. Voluntariamente, busco os rostos de quem conheci nesta cidade há tempos e tento me lembrar dos bairros, das vizinhanças, onde tais pessoas moravam, tendo um intuito ou télos consciente que me guia nesta busca. Mas, em Proust, quando toda a infância de Marcel acaba por sair de uma taça de chá, isto não é fruto de uma intenção consciente, apesar do ato de escrever sobre isto sê-lo.
A Recherche plasma em suas páginas uma rememoração que é “incompatível com a lembrança Erinnerung) consciente, que tende a historicizar, a fixar a imagem da memória num evento narrativo já interpretado (Erlebnis)”, aponta Hansen em seu artigo A Flor Azul na Terra da Tecnologia: “Proust transformava o dia em noite e a recordação num processo textual incessante, interminável, movido por uma ‘vontade cega, absurda, obsessiva de felicidade’, que quase levou o coração de Benjamin a parar, por afinidade. A direção ‘elegíaca’ da busca de Proust, afinal, era a do próprio Benjamin.” (HANSEN, pg. 241)
Ressalto aqui o termo interminável que Hansen atribui à escritura Proustiana, pois é justamente o que caracteriza o tecer de Penélope: a mortalha nunca termina de ser tecida. Contra o otimismo racionalista ou a ideologia do progresso, que propõe a possibilidade de um avanço linear rumo ao melhor, rumo a tempos cada vez mais racionais e “iluminados”, temos em Proust uma outra concepção do tempo que inspirará Benjamin até o fim de seus dias e que marcará seu escrito derradeiro, As Teses Sobre o Conceito de História.
Afinal de contas, Benjamin não pode ser caracterizado como um racionalista, um “apóstolo da razão” tal como Spinoza é descrito por Tariq Ali, mas sim alguém que se interessou profundamente por estados de consciências que manifestavam tudo que há para além da vigília, seja na obra dos surrealistas em sua busca por uma iluminação profana, seja no cinema e suas montagens alucinantes, seja nas vivências de uma consciência alterada e expandida pelo haxixe.
A obra de Proust dá acesso a um labirinto que está para além da razão: a Recherche nos permite transpor o limiar rumo a um locus literário onde o sonho, o devaneio, a rememoração nascida de um encontro fortuito da língua com um sabor, ou dos tímpanos com um ritmo, conduz um continente submerso a re-emergir. É esta emersão que o escritor é capaz de derramar sobre a página, em formato de obra, em caudalosas frases de um “Nilo da linguagem”. Haveria em Proust uma “teoria da memória – involuntária – sempre oriunda do esquecimento e por ele atravessada. O trabalho da escritura não consiste, então, em reproduzir, de maneira mais ou menos feliz, alguma substância vivida, mas, de maneira análoga ao gesto incansável de Penélope, em tecer conjuntamente os fios do esquecer e do lembrar.” (GAGNEBIN: 2014, p. 165)
A escritura tece interminavelmente a mortalha da Recherche conduzindo à tese de que “a memória, entregue a si mesma (e não controlada pela vontade consciente), transforma-se num rio inexaurível no qual cada lembrança chama por outra”, escreve Gagnebin (op cit, p. 167). Este Nilo inexaurível, escreve Benjamin, aponta para um “acontecimento lembrado” que é “sem limites”, já que é “apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, apud Gagnebin, p. 167).
A aura que ressurge em Proust não é mais aquela do objeto em contexto de culto, sacralizado, a ponto de podermos supor que se trata de uma aura profana conexa à imagem mnêmica, já que esta remete à unicidade do sujeito e seu itinerário biográfico singular, único. Assim como há uma unicidade da voz que permite que façamos a distinção entre Fulano e Beltrano através de seu timbre vocal (segundo Cavarero, a voz poderia ser lida em analogia à impressão digital: cada um tem a sua, a voz é inconfundível), poderíamos falar de uma unicidade da memória que faculta ao sujeito dizer “ninguém tem uma memória idêntica à minha”?
“Se Benjamin reencontra na obra proustiana certos elementos da imagem aurática autêntica que pareciam perdidos, tais como a abertura para o infinito e o halo que está em volta da aparição, ela já não possui, no entanto, a estabilidade da imagem do divino ou do belo. (…) Essa fragilidade torna a imagem uma aparição ainda mais preciosa, pois que ameaçada de desaparecimento, e ‘irrestituível’ quando não for pega em seu voo, dirá Benjamin nas Teses: ‘Pois é uma imagem irrestituível do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconhece como nela visado.’ Esse caráter de destrutibilidade e, portanto, de urgência, provém de uma transformação estética importante.
Com efeito, em Proust passamos de uma estética do olhar para uma estética do tátil, da vibração… Quando o narrador tropeça na calçada desigual do palácio de Guermantes, repetindo o passo em falso do poeta Baudelaireana, é pela virtude desse repentino desequilíbrio que a luz do Batistério de São Marcos o inunda novamente… Mesmo que sejam imagens, isto é, visões, que emergem da memória, aquilo que lhes dá sua intensidade arrebatadora só pode provir de uma sensação primeira, ou primitiva, como o tato, o gosto ou o olfato – sensação, portanto, anterior à construção do visível que, como se sabe, é tardia na criança. Essa ‘memória do corpo’, oposta pelo narrador desde as primeiras páginas à do espírito, é, sim, primeira, mas, por ser involuntária, é também mais fugaz, já que escapa à consciência, à inteligência que não consegue reproduzi-la ‘à vontade’. Ela é, então, a única memória verdadeira e, simultaneamente, a mais frágil, pois ‘passa como um relâmpago’ (aufblitzt), dirá Benjamin na Tese 5.” (GAGNEBIN: 2014, p. 171)
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Publicado em: 20/08/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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